quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Sobre Noboro Fukushima, Turiassu, Palestra Itália

A rua Noboro Fukushima, em Apucarana, no Paraná, é uma baita de uma ladeira. Minha casa é praticamente a primeira no alto, perto da esquina. 

Do muro lateral, a visão da casa de baixo e de seu quintal é panorâmica. Ali, com a ajuda de um banquinho, eu passava minhas manhãs aos oito anos de idade. Uma das quatro crianças do vizinho tinha a mesma idade que eu e, além de morar do lado da minha casa e estudar na minha escola, era o meu melhor amigo na época.

Um dia, ele me pegou de surpresa: "pra que time você torce?". Lá do alto do muro, eu fiquei sem saber o que dizer. Em meio aos meus Comandos Em Ação, nunca havia parado para sequer pensar em futebol. Ele engatou uma segunda pergunta, que definiu minha vida: "você não é corintiano, não, né?". "Não, né!? Claro que não!", a resposta, dessa vez, saiu rápida. O tom que ele usou me indicou claramente que ser corintiano não era lá uma coisa muito boa. Uma negativa veemente se fazia necessária. Meu vizinho era palmeirense. E o resto é história. Uma longa história.

Embora eu tenha uma foto com a camisa do Palmeiras datada de 1985, não posso dizer que nasci palmeirense. Mas, isso nunca me fez menos palmeirense. Muito pelo contrário. Depois que eu me dei conta de que havia tempo na vida para o Comandos em Ação e o Palestra, me tingi de verde até a alma.

A primeira partida que me lembro de acompanhar como torcedor foi a decisão do Paulistão de 1992. Eu vi pela TV, na casa do meu pai, um santista não-muito-convicto, que certamente não estava entendendo nada do meu choro ininterrupto. O Palmeiras perdeu. 

Mas, depois o Palmeiras ganhou, ganhou muito. E até os meus 16 anos, eu fui um fanático feliz. Ali da sala de casa, a mais de 500 quilômetros da Turiassu, eu comemorei muitas vitórias e títulos. Muitas vezes, em silêncio, quietinho para não acordar o resto da casa, nas quartas-feiras de Libertadores e Copa do Brasil. 

Inúmeras broncas eu levei da minha mãe ao, alucinado, chutar o sofá ou socar a parede - e depois, claro, ficar com o pé e a mão machucados. Fora os palavrões. "Não tô vendo balé, mãe!" Tantas tardes de domingo, eu passei dentro do quarto ao pé do rádio-relógio, imaginando gols e lances. Sempre de longe.

A Parmalat foi embora do Palmeiras quase na mesma época que eu fui embora de Apucarana para Florianópolis. Os tempos eram outros, as vacas leiteiras andavam bem magrinhas e, com a inexorável Série B, eu decidi fazer de conta para todo mundo - inclusive para mim mesmo - que eu estava mais interessado nas praias e na faculdade do que na camisa verde. E foi com esse espírito que não fui ao estádio quando o Palmeiras foi à Ilha de Santa Catarina enfrentar o Avaí. Orgulhoso, me recusei a prestigiar meu time no andar de baixo. E me arrependi logo depois: Avaí 1 x 6 Palmeiras.

O time subiu, fizemos as pazes e, no ano seguinte, tentei me redimir. Mas, acho que a camisa verde ficou levemente magoada comigo. Figueirense 0 x 1 Palmeiras, dia 14 de novembro de 2004. A vitória magra e a torcida espremida num cantinho do estádio feio não tiram a importância daquele dia. Finalmente, eu via o meu Verdão in loco.

A primeira vez no Palestra Itália encheu mais os olhos. Foi em março de 2007, assim que me mudei para São Paulo. Era apenas um Palmeiras x Juventus, mas, naquele 4 a 1, estavam em campo simplesmente Edmundo, o herói do tempo do banquinho no muro, e Valdivia, que eu ainda não sabia quantas alegrias - e quanta raiva - me daria dali em diante. São Marcos também estava lá. Mas, ele provavelmente prefere esquecer o dia em que se quebrou gravemente e perdeu o restante da temporada.

Os títulos que brotavam aos montes na TV da sala de Apucarana andavam raros. Contra a Ponte Preta em 2008, eu acreditei que seria escalado para trabalhar lá, no campo. Na véspera, me disseram que não. E já não havia mais ingressos. Foi pela TV mais uma vez. Da Copa do Brasil de 2012, eu fiquei de fora por causa de uma promessa.

Em novembro de 2010, eu fui ao Pacaembu para confirmar a ida do Palmeiras para a final da Copa Sul-Americana. O time havia ganhado do Goiás, em Goiânia, por 1 a 0 e poderia até empatar para avançar. Luan ainda fez 1 a 0. A virada do Goiás tornou infinito o caminho entre o Pacaembu e o lugar onde eu havia estacionado, e me fez prometer não voltar mais a um estádio de futebol enquanto a gente não ganhasse mais um título. Dessas coisas idiotas que você faz e não volta atrás.

Cinco anos e dois dias depois daquela noite no tobogã, às 9 horas da manhã, me foi aberta a possibilidade de comprar um ingresso para a final da Copa do Brasil, contra o Santos. Às 9h06, eu já recebia o e-mail de confirmação. Havia chegado a hora. Eu tinha certeza que seríamos campeões. 

Em 62 jogos presenciados no estádio, poucas vezes essa certeza me acompanhou tão fortemente. Foram 35 vitórias, 21 derrotas e seis empates. Mas, nenhum dia como aquele 2 de dezembro de 2015.

A confiança da vitória veio de longe, quase um mês antes. Já havia passado das 18 horas do dia 3 de novembro. Pela segunda vez, Camila e eu perdíamos a chance de pegar aberta La Chascona, a casa de Pablo Neruda em Santiago, no Chile. Conformados, descemos a rua a esmo. Foi quando me deparei com uma loja com prateleiras cheias de porcos de cerâmica. De todos os tamanhos. E um olhar mais curioso apontava: todos eles tinham apenas três patas.

O vendedor, então, nos contou que aquele porco vinha de uma lenda do povoado de Pomaire. Imediatamente, me lembrei do minidocumentário que eu tinha visto naquela manhã pela TV chilena. Justamente sobre a vida, a cultura e a economia do povoado de Pomaire, que vive em função do artesanato da greda, um tipo de argila. A coincidência atiçou minha curiosidade na lenda que o vendedor nos contava.

Em resumo: dizem que, em Pomaire, havia um porquinho muito infeliz. Com três patas, ele sofria o preconceito de toda a cidade. Era desprezado por todos. Certa vez, o desafortunado leitão desapareceu. Seu dono o procurou durante dias, até encontrá-lo ao lado de um imenso pote de ouro. Desde então, os artesãos de Pomaire fabricam milhares do chanchito de três pernas, que virou um amuleto de boa sorte.

A associação entre o porquinho defeituoso e vencedor do Chile e o tratamento que a imprensa e o adversário estavam dando ao Palmeiras antes da final foi imediata.

Compramos um para cada um, claro. El Chanchito de Pomaire era a
certeza do título. Tanto que valeria a pena até mesmo levá-lo dentro
da cueca para dentro do estádio, evitando qualquer possível problema com a revista na catraca. Mas, enfim...

Estacionei bem longe do estádio, como tem sido rotina nas noites de Allianz Parque lotado. Desci a rua Caraíbas meio abobalhado com o mar de camisas e fumaça verdes. Faltavam mais de duas horas para o apito inicial. Consegui o que parecia impossível naquele lugar e naquele momento: encontrar quase sem querer um amigo. Uma alegria e uma apreensão. Eu sabia que seria convidado para ver o jogo com ele. E depois de escolher pela internet a mesma cadeira de sempre no novo Palestra, eu não sabia o que fazer. Sim, eu sou desses torcedores estupidamente supersticiosos.

Tentei deixar a razão falar mais alto e me posicionei junto com meu amigo, em pé no lugar mais alto do estádio ao lado da cabine da Globo. Foi ali que eu chorei igual criança quando, na hora do hino nacional, subiram os mosaicos 3D, estouraram os fogos de artifício e se criou todo o clima da decisão. E tensão.

Apertando sem descanso o chanchito com a mão esquerda, vi o Gabriel Jesus perder um gol com dez segundos, vi o Lucas Barrios quase marcar de cabeça, vi o Palmeiras dominar o primeiro tempo, mas sem o resultado que precisava. No intervalo, nos olhamos: "o que eu faço? Vou para o meu lugar?", eu perguntei para o Miguel. "Não sei, cara, não sei", ele também estava nervoso.

Não dava mais para arriscar. Atravessei os setores até a minha cadeira J25 no 536-B da Superior Sul. A de sempre. Dali, sozinho, eu veria o Palmeiras campeão.

Os gols de Dudu eram a prova de que eu estava certo. Seríamos campeões. Pensei, de galhofa: "meu filho vai se chamar Dudu, com o apelido de Eduardo". Fui além e provoquei mentalmente: "não, meu filho vai se chamar Ricardo Oliveira". No minuto seguinte, o pastor tirador de onda fez o gol do Santos e eu fui tomado de um arrependimento sem tamanho. Era culpa minha e da minha provocação, claro. Castigo divino.

Nem nesse momento, porém, eu senti que a vaca iria para o brejo. Mas, a partir de então, eu prometi para mim mesmo: "não vou desejar o mal do adversário, vou apenas torcer para o bem do meu time". Apesar de toda minha raiva das provocações do Ricardo Oliveira, de todos já darem o Santos como campeão, apesar de tudo, o pensamento era estritamente positivo. Não queria o mal de ninguém. Nunca em minha vida tive um coração tão puro. Não foi por minha culpa que o Marquinhos Gabriel escorregou, eu juro.

Os pênaltis consagraram Fernando Prass, consagraram o Palmeiras, consagraram aquela noite na minha vida. Pela primeira vez, eu via meu time levantar uma taça de dentro do estádio. A imagem de Zé Roberto erguendo aquele troféu já está na galeria das mais marcantes dos meus 31 anos.

Pensei muito em meu avô, palmeirense octagenário (o responsável por aquela camisa que vesti em 1985) que talvez tenha tido uma última grande alegria futebolística. 

Pensei no garotinho de seis anos, sobrinho postiço, que me mandava áudios no WhatsApp, vibrando a cada lance, a cada gol, criando para sempre uma identidade verde, depois de flertar com os grandes rivais. 

Pensei na Camila que vibrava em sua casa, e no quanto ela gostaria de estar ali na J26 tão dela e no quanto a alegria dessas horas é combustível para o amor. "Te amo", eu escrevia. "O Palmeiras é campeão! Te amo!"

Mais uma vez, eu deixava o estádio atordoado. A multidão me levava. Atravessar o mar da Caraíbas parecia uma tarefa impossível
e, ao mesmo tempo, extremamente prazerosa. A fumaça verde tinha cheiro de alegria. As bandeiras, proibidas dentro estádio, enfeitavam o céu na madrugada inebriante da Pompéia. Quem seria capaz de dormir naquela noite?

Ok, foi apenas uma Copa do Brasil. "É apenas um jogo", você vai dizer. Mas, só eu e outras 39.659 sabemos o que sentimos naquela quarta-feira, 2 de dezembro de 2015.

Uns três anos depois daquele decisivo "pra que time você torce?", eu me dei conta de que o meu vizinho e sua família eram chatos, feios, bobos e caras de melão e que a única qualidade dele era ser palmeirense. Somos vizinhos que não se falam há mais de 20 anos. Ele não deve nem imaginar o quanto eu agradeço aquele empurrãozinho para o lado verde da força.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Após se pôr, o sol renasce no Japão

- Você não tava falando sério quando disse que não tem café, tava?

A voz dela o surpreendeu na varanda. Ele não acreditava que a moça fosse acordar tão cedo. Ela vestia apenas uma camiseta azul-marinho comprida dele e, apesar do cabelo curtinho todo bagunçado, da cara amassada e dos olhos remelentos, exalava charme e sensualidade. Deu-lhe um beijo totalmente despreocupado dos bafos matinais e puxou seu cabelo, inquisitiva.

- É sério? Não tem café nesse apartamento?

Ele riu.

- É sério, pô. Eu te falei que não tomo café.

- Mas, e daí? E as visitas? - ela havia voltado ao quarto, enquanto falava.

- Eu não recebo muitas visitas... E, além do mais, eu nem sei fazer café... - disse, olhando o horizonte gramado, privilégio de poucos na metrópole de pedra e asfalto. Ela voltou, segurando um cigarro. 

- Como assim!? Quem não sabe fazer café? - disse indignada, se preparando para acender o cigarro.

Ele lançou-lhe um olhar de reprovação. Era um antitabagista ferrenho, daqueles que tem cartaz de proibido fumar no quarto. Ela entendeu o recado.

- Eu preciso fumar. Faz umas 15 horas que estamos juntos e eu não fumei nenhum cigarro... Não dá pra dizer que sou fumante, vai? 

A moça já estava sentada sobre o trilho da porta de correr da varanda, uma perna para dentro, outra para fora, deixando a calcinha aparecer de quando em quando. Os pequenos pés eram bonitos, com as unhas pintadas com esmalte escuro. Fumava com uma postura sexy, bem estudada. Não tinha mais que 23 anos, mas mostrava um quê de uma bem-resolvida mulher de 40. Não estava nem um pouco preocupada com a possibilidade - remota, é verdade - de ser flagrada por alguém que chegasse de repente.

Ele estava um pouco atordoado e não esboçou uma reação mais firme quanto ao fumo. Ele, sim, estava preocupado com a possibilidade de um de seus companheiros do apartamento chegar. Sua casa era cheia de regras e só era permitido fumar na varanda, com a porta fechada.

- Tem Coca-Cola pelo menos? Preciso tomar alguma coisa, enquanto eu fumo. Cafeína! - ela perguntou, entre divertida e irritadiça.

O rapaz a olhou sem entender como alguém poderia querer Coca-Cola àquela hora da manhã. Levantou e foi até a cozinha. Gritou de lá:

- Vodca, cerveja, Gatorade...

- Meu Deus! - ela murmurou baixinho, antes de gritar de volta. - E água? Não tem água? Me traz um copo d'água.

Ele encheu um copo com água e o levou, já se desculpando. Ela riu, senhora da situação, e disse que estava apenas brincando, que ele relaxasse. Nem parecia que era ele quem estava em casa. Sentou-se no cantinho da pequena varanda, apenas de bermuda, olhando o nada e tentando não pensar em nada.

- Eu tô tentando fumar menos... - ela parecia se explicar. - Mas, ficar sem café não dá... Ainda mais agora que estou sem meus remédios...

O rapaz se voltou para ela, de repente, sem esconder um pequeno susto. Ela não recuou.

- Eu tenho transtorno bipolar. Tomo uns remédios tarja-preta. Me ajuda... - fez-se alguns segundos de silêncio. - Mas, desde que eu cheguei na cidade, não encontrei um bom médico... Já se vão uns cinco meses sem remédio... Tá foda...

Ele não sabia bem o que dizer. Fez um gesto de lamento com as sobrancelhas e ficou quieto. Ela riu.

- Eu sou normal!

- Tô vendo... - ele brincou, sem jeito. E ela ficou subitamente séria.

- Aliás, eu acho que sou a mais normal da família... - deu uma tragada longa, olhando longe o dia que se levantava.

O rapaz a olhava interessado. Era obviamente apenas uma menina. Tinha olhos espertos e amendoados e, na boca de lábios grossos, um sorriso provocador pronto para escapar a qualquer momento. Sua figura, ao mesmo tempo transgressora e desprotegida, misteriosa e surpreendentemente à vontade, o deixava curioso. Ele tentava enxergar além do que via, desenhando em sua cabeça uma personagem fascinante.

- Meu irmão me espancava... Praticamente me expulsou de casa. - o clima ficou meio tenso e ela completou, sem olhar para o companheiro de sacada. - Viciado em crack e pó.

- Foda. - ele disse baixinho. Não perguntou nada, mas ela continuou.

- Minha irmã não queria saber de nada. Nunca estudou. Saiu de casa aos 19 anos, grávida, sem namorado, e nunca mais voltou. Já sabe, né!?

Ela olhou para ele, esperando que ele tivesse entendido. Ele olhou para ela, esperando que ela explicasse.

- Uma menina que sai de casa aos 19 anos, grávida, sem namorado, e não volta mais... vira o quê? - ela disfarçava um nó na garganta com grandes goles de água.

Ele se manteve quieto. Mas, ela precisava falar, contar quem era, de onde tinha vindo, ter sua vida resumida na varanda, para um cara que ela havia conhecido há poucos dias.

- Meu pai morreu quando eu era criança... Minha mãe nunca se importou muito com nada... que não fosse dinheiro... Se casou de novo logo... Meu padrasto abusou muito de mim. E ela nunca fez nada... - apertou a bituca do cigarro no chão e virou-se de frente para a sacada, encolhida junto ao batente da porta.

Ele percebeu o copo dela vazio e se ofereceu para pegar mais água. Ela assentiu. Ficaram em silêncio por um tempo. Enquanto enchia o copo, ele tentava entender o que estava acontecendo.

- O que ela sempre quis era um visto estrangeiro para dar o fora daqui... - a moça disse, como completando um pensamento, quando ele voltou com a água.

- Ela?

- Ela, minha mãe.

- Ah... E foi aí que você foi morar no Japão?

- Hahahaha... - a gargalhada dela ecoou varanda a fora. Ela passava a mão pelo rosto dele como quem faz carinho numa criança, sem conseguir parar de rir. Beijou-lhe os lábios levemente e tentou se recompor, secando os olhos e ajeitando os cabelos.

- Eu no Japão?

- É! Japão! Você não disse que morou lá? - ele estava nervoso, se sentindo enganado.

- Você acreditou? - ela perguntou, escondendo o rosto entre os joelhos, malandramente. Ele não respondeu, contrariado.

- Mas, eu vi fotos no Facebook...

- Tá! Eu vou te contar uma história sobre o Japão... Mas, posso fumar outro cigarro? - ela pedia, fazendo charminho com o cigarro pendurado no beiço. Ele apenas abriu os braços, como quem diz: "o que eu posso fazer?".

- Aquelas fotos são de uns três anos atrás... Eu fui pro Japão, sim. Mas, eu não morei lá, não... Te falei isso só pra parecer mais interessante... Sabe como é, né!? Mais experiente... Mais vivida... Com uma outra cultura... Funcionou? - ela ria.

Ele estava contrariado, a fim de acabar com aquele papo ali mesmo.

- Bom, na verdade, eu só fui pra lá roubar o namorado da minha amiga. É o que dizem por aí! - ela tinha amargura na voz. Deu uma tragada, enquanto fazia sinal para que ele esperasse para ouvir suas explicações.

- Minha amiga, sim, morou lá. Morou em Tóquio por muitos anos, com a família. Família rica de diplomata. Uma moça linda, inteligente, delicada... Sabe aquelas que todo mundo ama? Lá, ela teve um namorado. Um brasileiro. Foi um namorinho adolescente e apaixonado... Até que chegou a hora de ela voltar pro Brasil e eles decidiram que seria muito difícil continuar um namoro com a distância. Terminaram.

O dia já ia esquentando. O rapaz foi à cozinha e voltou com cerveja e um pacote de Ruffles.

- É sério isso? - a moça riu do café da manhã do companheiro.

- Você foi para o Japão roubar o namorado da sua amiga. Não pode falar nada de mim. Continua. - ele estava começando a querer tomar um pouco mais as rédeas da situação.

- Bom... Eles terminaram. Ela voltou pro Brasil. E viveu sua vida feliz e contente por aqui. A gente morou juntas no tempo da faculdade... Foi aí que nos conhecemos... E foi nessa época que o menino do Japão começou a mandar cartas para ela... Tão romântico!

- Não sei se quero ouvir o resto dessa história... - ele a cortou, mas não estava falando sério.

- Claro que quer! - ela disse tomando a cerveja da mão dele. - Minha amiga lia as cartas pra mim, me mostrava as fotos dele... E ele tinha se tornado um rapaz muito muito bonito! Enfim... A minha amiga tava toda cheia de dúvidas... Havia se passado muito tempo que eles não se viam. E eles ficaram se correspondendo por carta durante um ano, mais ou menos. Ela me mostrava tudo! Tudinho mesmo! As coisas mais românticas e até as coisas mais picantes que ele escrevia para ela... Eu acompanhava tudo de muito perto! Praticamente participava do namorinho deles...

- Sei...

- Pois é... Eu não tive culpa, mas comecei a achar o cara incrível... - a moça ficou em pé, se apoiando nas grades da varanda e exibindo todo o contorno das belas coxas sob a camiseta. Ela demonstrava uma empolgação extra ao relembrar a história. 

- Aí... Ele convidou minha amiga a ir pra lá nas férias... Eu juro que a incentivei a ir! Juro! Mas, ela não foi. Os pais foram contra. Ela não quis contrariar... Era muito certinha, medrosa, insegura...

- Ela não foi. Você foi. - o rapaz também se levantou na sacada.

- Você é tão inteligente, meu bem! - ela enlaçou seu pescoço e o encheu de beijos na bochecha.

- E você é bem filha da puta, né!? - ele disse, apertando-lhe o traseiro. Ela fechou a cara e se afastou.

- Não é bem assim! Eu não sabia o que iria acontecer... E aconteceu que a gente se conheceu e se apaixonou... O cara era realmente tudo aquilo que eu imaginava! E muito mais... Muito mais! Passamos quase um mês juntos por lá... 

A garota largou o cigarro pela metade e virou o restante da cerveja num gole só.

- Eu não queria que ela soubesse... Mas, quem esconde alguma coisa hoje em dia, não é mesmo? Ela viu fotos minhas em Tóquio na internet e ligou os pontos... - disse, saindo da varanda.

Foi para o quarto e não voltou. Ele gritou para dentro do apartamento:

- Como terminou essa história? Eu quero saber como terminou!

Não houve resposta. Ela deixou o quarto vestida, pronta para sair.

- Você não vai me contar como terminou a história? - com seus braços, ele a prendia contra a parede, de brincadeira.

- Pra quê? - ela disse, insolente. Testa com testa. Nariz com nariz.

- Qual é o problema? Fiquei curioso, ué!

- E vai continuar curioso. - num movimento, ela se desvencilhou dos braços dele e foi em direção à porta.

- Peraí, aonde você vai? - ele segurou a maçaneta.

- Eu vou embora pra minha casa. Já tá na hora, né!? - ela estava impaciente, com as mãos na cintura.

- Deixa eu pôr uma roupa. Eu te levo. Você mora longe pra caramba.

O rapaz foi para o quarto se trocar. Quando voltou, ela já havia saído. Os acontecimentos das últimas horas tinham sido muito cansativos para ele. Deixou o assunto para depois e foi dormir.

Acordou um tanto desorientado, com o sol já se pondo. Pegou o celular para ver que horas eram e notou que havia uma mensagem. "Ela se matou, ok?". Eram 17h45. Ficou ali deitado na cama, de barriga para cima, olhando para o teto.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Além dos 10%

Olhou o cardápio de ponta a ponta, só para constatar o que não era novidade. Sempre pedia o mesmo prato executivo de contra-filé e suco de laranja. Em quase o mês no novo endereço, já percebia uma rotina se criando. E dela fazia parte sempre almoçar tarde, por volta das 15h30, na mesma lanchonete, localizada a 20 minutos de caminhada de sua casa. A comida era honesta, o ambiente limpo e o preço justo. As duas horas entre sair e voltar de casa para almoçar estavam se tornando o momento mais social e ativo de Carlos, um homem forte e saudável de pouco mais de 60 anos.

Em minutos, o pedido foi trazido à mesa por uma jovem garçonete, de corpo miúdo e esguio, pele negra bem cuidada, com maquiagem ligeiramente excessiva, cabelo preso num coque, olhos enormes e atentos, além de um grande sorriso de dentes bem brancos e alinhados. A simpatia radiante com que ela trazia o prato chamou a atenção do sexagenário.

- Qual é o seu nome? – ele perguntou assim que ela serviu o pedido, desejando “bom apetite”.

- Meu nome é Ana. – a moça respondeu, sorrindo ainda mais, e cruzou os braços à frente do corpo, pronta para atendê-lo no que fosse possível.

- Só Ana? – perguntou instintivamente.

- Só Ana! – ela assentiu sem nenhum sinal de que se sentia aborrecida pela pergunta.

- Me desculpa... É que normalmente as Anas são Ana-Alguma-Coisa, Ana Luíza, Ana Paula, Ana Carolina... – Carlos tentou amenizar uma possível descortesia.

- Não tem problema! O senhor tem razão... Mas, o meu é só Ana. – a garçonete completou com a mesma simpatia inabalável.

- Então, muito obrigado, Ana! – Carlos tentava ao máximo deixar de lado a cara sisuda e aborrecida dos últimos tempos. Conseguiu até dar um leve sorriso, antes da moça voltar para trás do balcão.

Àquela hora, quase sempre, a lanchonete estava vazia. O homem comia sem pressa, observando a movimentação dos funcionários, na limpeza e arrumação da louça do almoço. Naquele dia, ele dedicou uma atenção especial para Ana. E, a cada vez que seus olhos cruzavam com os dela, a garota sorria docilmente e meneava a cabeça.

Nos dias que se seguiram, Carlos fez o possível para ser atendido pela moça, de longe a funcionária mais simpática do estabelecimento. Se outro garçom procurasse atendê-lo, ele despistava com um “não decidi ainda”, antes de chamar Ana para pedir executivo de contra-filé e suco de laranja. E a moça o atendia sempre muito atenciosamente.

A verdade é que, durante semanas, a cena não evoluiu muito além de um “obrigado, Ana”, “por favor, Ana”, retribuídos com muitos sorrisos que, ele reparou, não eram um privilégio seu. A garota era sempre muito simpática e alegre, com colegas do trabalho e outros clientes. O bom humor constante da garçonete era quase perturbador para Carlos, que não julgava possível que alguém fosse sempre tão feliz.

- Você está sempre feliz, Ana? – já tinha se passado quase um mês daquele pequeno diálogo inicial. A pergunta surpreendeu a moça que arregalou os olhos e segurou um sorriso desconcertado antes de procurar resposta.

- Ah... Não sei... Acho que sim!

- Que bom, Ana! Que bom! Muito bom mesmo! – ele não tinha pensado em nada mais inteligente para dizer. Sentiu-se envergonhado e intrometido. Procurou sorrir, agradeceu e viu a garçonete voltar para trás do balcão.

Depois de se reprimir calado em garfadas de arroz com batata frita por alguns dias, Carlos teve uma atitude que surpreendeu até a si mesmo. A lanchonete estava ainda mais vazia que o normal. Ana estava debruçada sobre os cotovelos no balcão, vendo a vida passar, quando ele a chamou com um gesto.

- Pois não...

- Ana... – ele hesitou, olhou para o pequeno salão vazio – Será que você não gostaria de se sentar e me fazer um pouco de companhia?

A moça arregalou os olhos e sorriu, como sempre. E quase sussurrou.

- Senhor, eu não posso...

- Não pode? Por quê? Não tem ninguém por aqui... – ele fazia questão de falar alto e olhava para uma senhora gorda no caixa, provável patroa de Ana. A garçonete também se voltou para a mulher, como pedindo permissão. Sem muita simpatia, a senhora deu de ombros. A moça se sentou.

- Só um pouquinho... – disse com delicadeza, depois de ajeitar a coluna bem reta no encosto da cadeira.

Fez-se um silêncio meio constrangedor. Carlos continuava comendo, tentando sorrir de vez em quando. Ana observava pacientemente, os braços baixos numa postura de quem espera a próxima ordem, postura de garçonete aguardando o próximo pedido. Ficaram assim por uns três minutos. E foi a garota quem quebrou o gelo.

- Eu sempre vejo o senhor almoçando sozinho. O senhor trabalha por aqui? - ela tentou dizer de uma maneira que não parecesse intrometida ou ofensiva. Ele terminou lentamente de mastigar, antes de responder.

- Eu já não trabalho mais. Me aposentei no fim do ano. - e, assim, sem maiores detalhes, voltou sua atenção novamente ao prato.

- Hum... E a sua família...?

Carlos olhou para a garçonete com um sorriso um pouco forçado:

- Eu não tenho família.

O clima de simpatia já dividia espaço com algum constrangimento. Enquanto nenhum cliente chegava, Ana permanecia ali sentada, observando o homem terminar de comer em silêncio. Durou dois ou três minutos. Quando terminou de comer, Carlos levantou a cabeça e olhou para a moça com gratidão. Ela fez menção de retirar seu prato, mas ele segurou-lhe a mão levemente e fez sinal para que esperasse um pouco mais.

- Minha esposa faleceu faz quatro meses... Assim que me aposentei. E logo depois, me mudei para este bairro, para o apartamento que tínhamos acabado de comprar... Moro sozinho. Não tivemos filhos.

Ana, que estava pronta para se levantar com o prato sujo, tinha se ajeitado na cadeira, para ouvir tudo com aqueles olhos grandes e atentos.

- Sinto muito, seu... Desculpa, eu não sei o nome do senhor...

- Carlos.

- Sinto muito, seu Carlos... Eu nem sei o que dizer.

- Não precisa dizer nada! Tá tudo bem, mocinha! A vida é assim, né!? Muito obrigado pela companhia, Ana! - o homem se levantou num impulso e foi ao caixa pagar a conta, deixando a garçonete pensativa à mesa.

Diariamente, Carlos e Ana se cruzavam na lanchonete, sempre no mesmo horário. Em alguns dias, o diálogo entre os dois não passava de "boa tarde", "pois não", "o de sempre", "obrigado". Mas, quando era possível, não havia movimento e percebia-se a patroa de bom humor, a moça se sentava à mesa de Carlos.

Aos poucos, as conversas foram se destravando e o clima de estranheza da primeira vez foi ficando para trás. Ana se mostrou uma garota muito falante e expansiva, como o sorriso constante poderia sugerir. Com semblante cada vez menos carregado, o homem não demorou muito para descobrir quem era a garçonete que sempre o atendia.

Foi assim que ele soube que Ana morava muito longe dali, que acordava cedo e pegava dois ônibus e o metrô para trabalhar, que vivia apenas com a mãe, que não tinha irmãos, que tinha parado de estudar após o Ensino Médio. Cada conversa acrescentava um detalhe a mais sobre a moça. E em algumas semanas, os dois já poderiam se considerar amigos.

Carlos se mostrava cada vez mais interessado pela história de Ana. E, de fato, a moça carregava uma aura de superação e gratidão que não se encontra em todo lugar. Deixada em um orfanato pouco depois de nascer, a garota só havia conseguido uma família que a acolhesse aos cinco anos de idade. Mas, não poderia ter sido melhor, ela contava. Apesar das dificuldades financeiras, os pais adotivos não mediram esforços para dar a ela toda educação e, principalmente, todo amor que tinham. Seu pai tinha morrido havia dois anos.

- Ele tinha mais ou menos a idade do senhor... Na verdade, o senhor me lembra um pouco ele...

Ouvir isso de Ana no meio de uma conversa mexeu com Carlos, que não estava acostumado a se deixar levar pelas emoções. Naquele dia, ele deixou a lanchonete sentindo um estranho nó na garganta.

No almoço seguinte, o homem chegou à lanchonete com uma caixa de papelão. Em casa, tinha se lembrado que, em uma das conversas entre os dois, a garçonete havia revelado um gosto especial por desenho e pintura. Reuniu toda uma coleção de fascículos antigos sobre grandes nomes da pintura, desses que vêm encartados em jornais, que estava esquecida em um móvel da sala, e levou para presentear Ana. 

A garçonete estava ocupada. Ele, então, deixou a caixa ao lado da mesa e fez um sinal de que era para ela. Quando entendeu o que havia na caixa de papelão, a moça extravasou sua felicidade. Com os olhos cheios d'água, pulou no pescoço de Carlos num apertado abraço infantil e genuíno. Perceber o sucesso que o presente havia conseguido fez o homem experimentar uma satisfação quase esquecida em sua vida.

Nos dias que se seguiram, Ana devorou todo aquele material avidamente, atenta a cada detalhe, cada técnica, cada característica dos pintores mais conhecidos da história. As conversas entre os dois passaram a ter a arte como tema único, ainda que Carlos fosse apenas um leigo curioso. A garota estava fascinada pelo mundo novo que os fascículos lhe apresentavam.

- Por que você não pinta?

A moça corou com a sugestão e sorriu envergonhada:

- Eu tenho meus desenhos... Mas...

Carlos a cortou, disse que queria ver sua obra. Ela resistiu um pouco, mas concordou em mostrar-lhe um ou outro desenho. E assim, os dois acrescentaram mais um elemento àquela peculiar relação entre cliente e garçonete. A patroa de Ana não parecia muito simpática àquilo, mas sabia que a garota era uma boa funcionária, além do horário ser pouco movimentado por ali.

Não era preciso ser muito entendido em artes para perceber que a moça tinha algum talento para desenhar e Carlos se preocupava em incentivá-la a se desenvolver cada vez mais. Ana era interessada, autodidata e, ainda que não tivesse a oportunidade de um estudo regular, mostrava uma evolução incrível.

Um dia, Carlos chegou para almoçar com um novo presente. Havia passado na livraria e comprado um grande e pesado livro ilustrado sobre os grandes pintores italianos. A garçonete adorou e, a cada pequeno intervalo no trabalho, lá estava ela, num cantinho atrás do balcão, hipnotizada pelas páginas que lhe traziam Rafael Sanzio, Sandro Botticelli, Fra Angelico e companhia. Folheava e cultivava um sonho: ver tudo aquilo de perto.

Numa tarde de quinta-feira, Ana estava especialmente empolgada e sorridente. Quando sentiu que o trabalho estava tranquilo, sentou-se à mesa de Carlos, que estava acabando de almoçar.

- Hoje é meu aniversário! Vinte e dois aninhos! - abriu os braços com vibração.

Carlos sorriu e, do seu jeito naturalmente contido, terminou de comer, se levantou e lhe deu um abraço de parabéns. Quando a garota voltou ao trabalho, o aposentado ficou ali sentado, por uns minutos, pensando em como é ter 22 anos e lembrando os seus 22 anos.

Voltou no dia seguinte, como sempre. Comeu seu prato executivo de contra-filé e tomou seu suco de laranja lentamente. Às sextas-feiras era sempre mais difícil que Ana tivesse tempo para lhe fazer companhia. Mesmo assim, ele fez questão de ser atendido por ela. Levantou o braço e pediu que a moça trouxesse a conta na mesa.

Entregou-lhe a pequena pastinha de couro preta com a conta e o dinheiro, desejou a ela um bom fim de semana e, antes de sair, disse, olhando firme em seus olhos:

- O troco é seu, tá?
Foto: Reprodução/Tumblr/Casual Cynic/G1

Ela estranhou, mas agradeceu sorridente. Carlos já tinha saído, quando Ana percebeu um envelope grosso junto com a conta. Havia ali uma gorjeta de três mil reais em dinheiro. "Sua viagem para a Itália! Aproveite! Feliz aniversário!", estava escrito à caneta com letra bonita.

A garota procurou através das janelas ver o aposentado indo embora, mas não teve sucesso. Ana, então, secou as lágrimas com as costas da mão, guardou o envelope e voltou ao trabalho, exibindo um sorriso ainda maior que o normal, o que parecia impossível. Ela nunca soube o porquê, mas aquela foi a última vez que Carlos almoçou ali.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Barão de Capanema

- Thiago! Thiago! Ei, Thiago!!!

Eu estava sozinho numa feira de rua, cheia de gente, tomando um caldo de cana, sob o calor de 35 graus de janeiro. Além disso, existem milhões de Thiago por aí. Não dei bola para o grito agudo que vinha não sei de onde.

- Thiagooooo! Thiaaaaagooooo!

Já incomodado com meu nome berrado por aí, virei para ver o que estava acontecendo. Uma moça linda vinha correndo esbaforida e sorridente. Nunca a tinha visto na vida. Pronto, não era eu o Thiago que ela queria. Dei-lhe as costas novamente.

- Thiago! Ei, Thiago! Você mesmo! – tocou de leve o meu ombro. Era comigo.

Virei e o mundo entrou numa câmera lenta de cinema. Ela tirou os óculos escuros, revelando os olhos verdes e balançando os cabelos bem pretos e lisos, sem deixar um instante de sorrir aquele sorriso que certamente deixava seu dentista orgulhoso. Boca bonita destacada pelo batom vermelho. Pele branquinha, branquinha, com pintinhas aqui e ali, descendo pelo pescoço. Não era alta, bem magrinha, cintura fina, seios desenhados com precisão e delicadeza sob uma blusa de alcinha branca, sutiã aparecendo, shorts jeans curto, os pés lindos e bem cuidados em sandálias de salto. Um perfume delicioso. Tudo isso a 30 centímetros do meu rosto, me abraçando demoradamente e com vontade. Um engano que se desfaria em alguns segundos, mas que poderia durar o dia todo.

- Nossa, Thiago! Que bom te ver! Quanto tempo! Quanto tempo!!! Nossa! Não tô nem acreditando! – a moça estava genuinamente emocionada. Colocava a mão no peito, sentindo o coração acelerado.

Eu não sabia exatamente o que fazer. Olhava para um lado e para o outro, tentando descobrir se alguém estava assistindo àquilo ou se, de repente, o verdadeiro Thiago estava por ali, pronto para surgir e desfazer aquela farsa.

- Eu... Eu... – eu não sabia por onde começar. – Eu acho que não sou quem você tá procurando... – Ela me cortou.

- É você, sim, Thiago! É exatamente você! – me abraçou de novo, se afastando em seguida, envergonhada.

Muito tempo antes, eu havia morado naquela praça durante quatro anos. Não seria a primeira vez que alguém daquela época me reconheceria. Tinha sido assim com o porteiro do meu ex-prédio, com o senhor da banca de jornais, com a moça que vende sabonetes aromáticos, com o dono do restaurante por quilo. Mas, de todos eles eu me lembrava. E esquecer uma garota como aquela que estava na minha frente era simplesmente impossível.

- Olha, moça, me desculpa...

- Não tem problema! Você não deve estar se lembrando de mim... Já faz tanto tempo! – ela sorria compreensiva, me embaraçando ainda mais.

- Muito tempo?

- Muuuuuito tempo! Hahahaha – que risada gostosa! – A gente estudou junto em Apucarana!

A coisa estava ficando séria. Ela havia estudado comigo em Apucarana, a 500 quilômetros e, pelo menos, 15 anos dali! Logo eu que sempre me orgulhei de ter uma excelente memória. Ela deve ter percebido meu estado de completa confusão.

- Relaxa! Foi no Glorinha, ainda na primeira série. Seria impossível você se lembrar de mim! Faz quase 25 anos! Eu mudei muito, é claro! – a bela me deu o braço e fomos andando lado a lado, por entre as pessoas. Glorinha era o apelido da Escola Nossa Senhora da Glória, onde estudei do pré até a oitava série, o que dava ainda mais credibilidade para aquele encontro surreal.

- Primeira série do Glorinha! Caramba! Mas, eu também mudei muito! – parei e a encarei por um instante. – É sério que você me reconheceu aqui, depois de tanto tempo?

- Claro! – ela disse da maneira mais jovial possível, me deu o braço de novo e continuou caminhando. – Eu nunca me esqueceria de você...

- Nossa! Eu tô completamente embasbacado! Olha... É horrível isso, mas... eu vou ter que perguntar seu nome! – eu estava tão aturdido que nem pensava no privilégio de estar caminhando numa das feiras mais frequentadas de São Paulo de braço dado com a garota mais bonita que por ali passaria naquele dia ou mês ou, talvez, ano.

- Hihihi... – ela riu, apertou meu braço e olhou pra mim. – Jaqueline!

- Jaqueline da primeira série do Glorinha! – exclamei, olhando para o céu e agradecendo a minha sorte.

Continuamos andando a esmo pela feira. Jaqueline era encantadora e falante. Uma menina que, em cada gesto, cada palavra, cada sorriso, negava ter a mesma idade que eu. Ela contou que, depois da primeira série no Glorinha, havia se mudado para alguma cidadezinha do interior de Goiás. Agora, tinha recém-chegado a São Paulo e estava amando tudo, mas não conhecia ninguém. Passava o tempo todo sozinha e estava feliz da vida por me encontrar ali, por acaso. 

Tudo estava perfeito. Decidimos sentar para comer e beber alguma coisa. Era sábado e tínhamos todo o tempo do mundo para colocar em dia os últimos 25 anos de nossas vidas.

- Thiago, que lugar incrível! – Jaque – já tinha virado Jaque, claro – prendia os cabelos num daqueles irresistíveis coques meio bagunçados no alto da cabeça. Eu estava hipnotizado. – E que calor, hein!?

Eu tinha a levado a um dos meus lugares preferidos da cidade. Bem simples, com feijoada boa e barata, cerveja de garrafa, música ao vivo, decoração com cara de praia, pufs feitos de pneus para sentar.

- Como é possível que eu não me lembre de você? Me diz! – servi o copo dela de cerveja bem gelada.

- Da mesma forma que eu nunca te esqueci! – ela levantou o copo num brinde, sorrindo quase obscenamente. – Não tem explicação! – completou depois de tomar um longo gole e lamber a espuma dos lábios.

- Difícil de acreditar... – provoquei.

- Ah, é!? Então, vamos lá... Como eu sei que você morava ali perto da escola, na rua Noboru Fukushima, que você tem um irmão mais novo e seus pais são separados...? – ela dizia tudo isso, segurando forte a minha mão e olhando nos meus olhos, bem séria, para se acabar em risos. – Te assustei, né!?

Eu não sabia o que dizer, fiz que não com a cabeça e fiquei olhando para a mão dela que ainda segurava a minha. Uma mão pequena, de dedos finos, bem delicada e firme ao mesmo tempo. Não sei quanto tempo perdi ali, mas quando levantei a cabeça, ela me olhava com ternura. Sorri.

- Posso te dizer uma coisa? – ela perguntou, e eu abri os braços como quem diz “vá em frente”. – Eu era apaixonadíssima por você! – ela escondia o rosto com as mãos, de brincadeira.

- Na primeira série?

- Na primeira série!

- Como assim!? – ri e apontei para uma placa com o nome do lugar onde estávamos: “Como assim!?”.

- E se eu te falar que sempre fui apaixonada pra você e que meu sonho era te encontrar de novo um dia...? – ela provocou com os lábios tocando a borda do copo.

- Duvido! – chamei a garçonete e pedi outra cerveja.

Entre clássicos da música brasileira, muitas outras garrafas de cerveja, bolinhos de carne seca, risadas e charme, a tarde ia passando. A conversa era daquelas que você deseja que nunca acabe. Era impressionante como nossos gostos, experiências e desejos coincidiam. Jaqueline sabia falar e ouvir na medida certa. Era engraçada, inteligente, perspicaz, atenciosa, charmosa. E linda, de uma maneira absurda. E eu, completamente apaixonado.

- Sobremesa na minha casa? – ela perguntou, de repente, e eu não soube identificar ingenuidade ou sensualidade no convite. Gaguejei um pouco, eu acho.

- Por que não? Hahaha – ri, como se tudo não passasse de uma brincadeira.

- Tô falando sério! Tenho sorvete e bolo de chocolate! – pela enésima vez, ela segurava minhas mãos e arregalava os olhos. Era irrecusável.

Pagamos e saímos à praça, enquanto o sol estava se pondo. O céu, em tons de laranja e rosa, estava lindo. O clima, quente e agradável.

- Então, Dona Jaque, a senhorita mora onde?

Ela colocou os óculos e apontou.

- Ali.

- Ali?

- Ali! – ela disse e foi me puxando pela mão.

Senti um arrepio. Jaqueline morava no mesmo prédio onde eu havia vivido por tantos anos. Meu primeiro endereço em São Paulo. Ela não deu muita bola, mas brincou.

- Sério? Mais uma coincidência, mais um sinal! Vamos lá... O sorvete e o bolo nos esperam!

Na recepção, é certo que o porteiro me reconheceu, mas não respondeu ao meu cumprimento. Pelo contrário, fez uma cara de espanto quando me viu. Entramos no elevador e, assim que a porta se fechou atrás de mim, Jaque me beijou com um furor surpreendente. A garotinha havia ficado da porta da rua para fora. Correspondi. E, por dois minutos infinitos, nos agarramos como se não houvesse amanhã, alheios às câmeras de segurança. Só fomos interrompidos pelo baque do elevador chegando ao andar.

- Esse é o seu andar? – perguntei ofegante.

- É! Já sei, já sei... Você vai dizer que é exatamente o mesmo andar onde você morou... E blá, blá, blá... Ei, vai ficar aí? – De fora do elevador, Jaque segurava a porta, enquanto eu olhava para o botão com o número oito, incrédulo.

- Se você disser que o seu apartamento é o 82, eu juro que vou embora. – eu disse, sorrindo nervosamente.

- Jura que você vai abrir mão do sorvete e do bolo de chocolate por causa de uma bobagem dessa...? – ela parou no corredor, falando com jeitinho adolescente, levantando o pé e enrolando o cabelo no dedo.

Parecia impossível, mas era real. Jaqueline, a Jaqueline da primeira série do Glorinha, acabara de alugar exatamente o mesmo apartamento onde eu morei assim que me mudei para São Paulo. 

Entre o tesão e a sensação de que havia algo errado, optei pelo primeiro. A porta mal fechou e Jaqueline me empurrou para o sofá. Em um segundo, me dei conta de que todos os móveis estavam nas mesmas posições de quando eu vivi ali.

Ela sentou de pernas abertas no meu colo, me beijando e me enlouquecendo. Tirou minha camiseta e ficou em pé de frente para mim, segurando minha cabeça. Lentamente, tirou as sandálias e a blusa de alcinha, revelando uma barriga perfeita. Enquanto soltava o sutiã, caminhou para o quarto, o caminho que eu tão bem conhecia.

- Vem! – ela me chamou com voz baixa e sensual, para o quarto escuro.

Confesso que hesitei por um instante. Levantei do sofá devagar, olhando cada canto daquele cômodo. Era tudo muito confuso, tudo muito igual a anos atrás. E ainda mais assustador foi notar na parede da sala o quadro com a minha foto dos meninos jogando futebol no Rio de Janeiro, com o Pão de Açúcar ao fundo, que eu havia deixado no lixo quando me mudei dali.

- Você não vem, Thi? Vem!

Instintivamente, caminhei em direção ao quarto, sem entender exatamente o que estava acontecendo. Quando entrei, a luz se acendeu e a porta do armário se abriu. Maria, a ex-namorada com quem ali vivi por alguns meses e quem eu não via desde que ali havíamos terminado, muitos anos antes, saiu de dentro dele e me matou com oito facadas.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Tie-dye

Na esquina da alameda dos Pamaris com a rua dos Chanés, Funk Como Le Gusta vai tocar às 23 horas da quinta-feira. Uma hora antes, a casa já recebe um bom público, quando a moça entra. Não chama a atenção exatamente pela beleza, embora tenha um corpo em boa forma e carregue um certo charme em seu jeito perdido. Mas, está sozinha, algo um tanto inédito naquele lugar e naquela noite.

Ela parece procurar por alguém, olhando sem enxergar, como uma míope que renega os óculos. Senta-se de costas para o balcão logo ao lado da entrada, cruza as pernas de panturrilhas bem torneadas e fica ali como a esperar. Os cabelos bem pretos, cacheados e cortados na altura dos ombros estão molhados e um lápis preto delineia os olhos.

A moça usa um vestido rosa de frente única com estampa tie-dye, que vai até um pouco acima dos joelhos, e sandálias bege de salto alto, além de um bracelete metálico enrolado no bíceps esquerdo. As unhas dos dedos das mãos estão pintadas de preto. Nos pés, um vermelho intenso. Uma garota simples, por volta dos seus 30 anos, talvez menos, que passaria despercebida não fosse o fato de estar sozinha. E assim permanecer.

No balcão, não bebe. Nem sorri. Mostra-se até um pouco desconfortável. Míope ou alheia, não corresponde os olhares dos rapazes desacompanhados. Parece admirar a bonita decoração inspirada pelos ritmos de New Orleans. A casa é ampla, com uns postes baixinhos imitando os de rua e iluminando as mesas distribuídas entre o salão principal e o mezanino. 

"Há duas possibilidades: ou ela está esperando alguém ou está esperando você", comenta um observador, tentando ser engraçado. "Há três possibilidades: ou ela está esperando alguém ou está esperando você ou está esperando alguém, mas pode mudar ideia se você chegar primeiro", retruca outro especulador. Mas, ninguém se aproxima da moça de gestos contidos e olhar sem foco.

A banda começa a tocar e, em minutos, o espaço destinado à pista de dança está tomado pelas pessoas que se balançam ao ritmo swingado da música. A atenção está toda no palco, nas performances, no som dos metais. A moça do vestido rosa deixa o balcão no fundo do salão para se posicionar ao pé da escada ao lado direito do palco. Dança timidamente, ainda desacompanhada. Os olhos na banda.

"Cara, ela continua sozinha!", alguém comenta e realimenta outra inócua rodada de adivinhações. "Deve conhecer um músico da banda." "Louca." "Puta?" A leviana dúvida atiça o imaginário, abre novas possibilidades e faz pensar em quanta curiosidade uma mulher sozinha na noite pode gerar. Talvez ela esteja ali simplesmente porque gosta da música e não arrumou companhia para ir ao show, mas essa hipótese não foi cogitada por quem observa.

No bis da banda, ela, que não foi vista com bebidas, já dança mais solta e até filma os músicos com o celular. Finalmente alguém se aproxima - um sujeito careca de barba rala cuidadosamente desenhada, vestindo uma camisa pólo azul bebê com listras rosa finas que marca um pouco a barriga saliente. Ele toma uma Stella Artois e parece dizer coisas engraçadas. Ela é receptiva, embora se mantenha um pouco distante. Mais escuta do que fala, mas a conversa flui. Devem falar da banda, do lugar e da vida. 

O show termina, o ambiente se torna mais iluminado e o DJ assume, colocando Jor Ben Jor para cantar W/Brasil. Rapidamente a pista começa a esvaziar, mas os dois permanecem no mesmo lugar, numa conversa ao pé do ouvido. Ela sorri, se torna mais falante e gesticula mais. Com o pretexto de não conseguir ouvi-la direito, ele se aproxima e põe a mão nas costas dela. Encostada na escada, a moça faz charme, enrola seus cachos com o dedo. Como em tantas outras vezes durante a conversa, o rapaz aponta com a boca da long neck o outro lado da casa, onde, provavelmente, estão seus amigos. E assim, lentamente, o jogo se desenvolve por uma hora ou mais.

Neste momento, a fila do caixa é a área mais povoada do lugar. No balcão, uma curiosa dupla formada por uma garota muita alta descalça e outra muita baixa de óculos, ambas bonitas, dança de olhos fechados, com movimentos largos, ora sensuais, ora alcoolicamente cambaleantes. São a atração final de uma noite que encaminha seu desfecho.

A pista tem meia-dúzia de amigos empolgados, quando a moça de vestido rosa de estampa tie-dye enfia a mão em sua bolsa, procurando alguma coisa. De lá, ela tira um CD. Um objeto quase em desuso, que, na saideira de uma noite "como le gusta", serve para responder as especulações de quem ainda a observa e desfazer grande parte do seu encanto misterioso.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Woody e Gambit no Cemitério de Congonhas

Romário ou Gambit, dos X-Men. Se alguém me perguntasse quem eu queria ser quando tinha dez anos de idade, essa poderia ser a resposta. Romário ganhou a Copa e não tem ligação direta com o assunto que me fez voltar a escrever depois dos recreios de fim de ano. Gambit, sim.

No fim daquele ano, não lembro se 1994 ou 1995, fiz minha mãe saber o que eu queria de Natal: o boneco ("hominho", dizíamos) do Gambit, um herói meio anti-herói dos X-Men, o meu desenho animado preferido então. Ela foi atrás, mas voltou da loja com a triste notícia de que não tinham o Gambit. Mas, tinham o Forge, personagem descendente de índios Cheyenne, bem coadjuvante, que ela comprou e embrulhou para me dar na noite do dia 24. 

Fiquei frustrado, é claro. Mas, tive alguns dias para lidar com isso e, no Natal, já estava até contente em ganhar o Forge. Abri o presente e... ali estava o Gambit, numa troca de última hora! Uma surpresa maior do que o anúncio da contratação do Dudu pelo Palmeiras, para não perder a chance de tocar no tema mais quente do mundo do futebol neste fim de semana.

Eu já tinha um sem-número de hominhos do Comandos em Ação e de outros poderosos heróis e bravos soldados, alguns sem perna, outros com o braço mastigado pelo cachorro de algum vizinho. Além disso, estava quase na hora de deixar de brincar com eles, iria começar a ficar meio feio para um moleque daquele tamanho. Mas, mesmo assim, ganhar o Gambit foi especial. Tanto que até hoje, vinte anos depois, ele ainda está no meu armário, como esteve em tantas casas onde morei. Um sobrevivente daquela época. Um discreto elo de ligação com o que passou.

Lembrei-me disso tudo vendo a cena final do filme Toy Story 3, semana passada. Andy, a caminho da faculdade, doa seus brinquedos mais queridos para uma garotinha que, sem dúvida, vai cuidar bem deles. E só ele sabe - ou só nós sabemos - o quanto foi difícil para ele quando a menina levantou o braço do caubói Woody para lhe dar adeus.

Graças a Deus, na vida real, eu nunca perdi ninguém muito próximo de mim. Não conheço essa dor de perto. No entanto, desde cedo, me acostumei a lidar com despedidas. Talvez mais cedo do que eu tenha me dado conta, já que nasci numa cidade onde nunca morei. Mas, o fato de estar acostumado aos "adeuses" não os torna mais fáceis na prática.

O fim do filme foi como digitar a palavra "despedida" no HD da minha memória e clicar em pesquisar. De pronto, vieram tantas coisas. Soltas, sem uma ligação lógica entre si, remotas num passado distante.

O pai calça o sapatinho no irmão e diz: "quando vocês voltarem de viagem, o papai não vai estar mais aqui". Novelas, filmes e livros acabam e os personagens que faziam companhia já deixam um vazio impossível de ser preenchido. A escola onde estudou por quase dez anos não tem Ensino Médio, para onde vão os colegas?

Da janela do banco de trás de uma perua Escort abarrotada de roupas, acessórios para casa e sonhos, vê a mãe e a avó chorarem no portão de casa, uma cena talvez inédita. De dentro do ônibus onde vai passar as próximas 17 horas, vê a namorada dando tchau, sem saber o que pode ou não ser prometido num futuro incerto. O abraço na amiga idosa no aeroporto: "obrigado e até um dia?". 

O texto dramático e metido a mártir para - tentar - manter a cabeça erguida ao mudar de emprego. A namorada cruza o portão de embarque, com uma data - não muito próxima - marcada para voltar e um continente inteiro de saudades. A dificuldade em voltar para a sua casa a cada vez que vai para a casa da mãe. A incapacidade um tanto ridícula de se desfazer do que já não serve mais: tralhas, roupas velhas, sonhos antigos.

E, de repente, estou ali, na pequena varanda - talvez 0,60m por 2,10m? -, como tantas outras vezes, olhando privilegiadamente o horizonte de uma cidade sempre acusada de não ter horizonte e experimentando uma nova sensação de despedida. Não imaginava que seria tão difícil deixar para trás uma vista.

Durante três anos e cinco meses, tudo era desculpa para estar ali, diante daquele belo panorama. Era ali que eu via um novo dia começar, observava as cores e ouvia os sons da noite, fazia orações em momentos críticos, agradecia os dias felizes, pedia proteção aos meus, tomava cerveja escutando música num sábado de manhã, tomava vinho pensando na vida numa segunda à noite, fugia das pessoas para falar ao telefone, ouvia histórias de vida, tinha conversas filosóficas com outras pessoas ou comigo mesmo e fotografava. Perdi a conta do número de vezes que fotografei aquela vista. Fotografei pela beleza da paisagem, fotografei para exibir meu privilégio, fotografei porque era dia e fotografei porque era noite.

Nos últimos 12 anos e meio, me mudei umas oito vezes mais ou menos. Algumas mudanças foram ligeiras e felizes. Outras foram pesadas e deram vontade de desistir. Houve medo. Houve expectativa. Sonhos abriam as portas de novos apartamentos. E, às vezes, eram deixados ali mesmo na saída, porque já não cabiam mais nas caixas e malas que partiam para um novo endereço.

Ok, diante de tantas outras mudanças, a atual é bem mais simples em teoria. Tudo bem, a nova casa está a apenas nove quilômetros da antiga. Eu sei que as coisas podem ser bem mais práticas e divertidas no novo CEP. A vida sempre segue, é claro. E, felizmente, para um caminho melhor, quase sempre. Mas, me parece que algumas coisas a gente leva na bagagem, mesmo sem perceber, entre roupas, sapatos, xícaras e cartões antigos. 

Tenho a impressão que a vista do Cemitério de Congonhas vai fazer companhia ao Gambit em alguma caixa de papelão.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Temporariamente evitando uma conexão ruim

"...que lá na Praça Onze tem um videopôquer para se jogar..."

Acordou de sobressalto. Parecia ainda dentro de um sonho. Não estava esperando que o rádio-relógio tocasse num volume tão alto e, assim, Gilberto Gil chegando pelas ondas da FM lhe pareceu assustador. Tomou banho, ainda pensando divertidamente se lá na Praça Onze haveria mesmo um videopôquer para se jogar. Vestiu-se sem pressa e percebeu que, depois de muito tempo, não estava atrasado para o trabalho.

Sentou-se em frente à TV e, quando o noticiário foi para o intervalo, se deu conta de que era capaz de repetir cada palavra e cada música de todos os comerciais, mas parecia que os estava vendo pela primeira vez. Não se lembrava daqueles atores, daqueles efeitos, daquelas cenas. Sem dúvida, já os tinha ouvido, mas nunca os tinha visto.

- Bom dia, seu Mário! - escutou o cumprimento, virou-se para responder ao porteiro e ficou impressionado. "Nossa, como tá branco o cabelo do Chico..."

Deixou o prédio ainda pensando em como o porteiro tinha se tornado grisalho da noite para o dia. Na frente do condomínio, parou maravilhado. Três pequenos macaquinhos corriam pelos fios da rede elétrica. A voz do faxineiro o tirou do estado embasbacado.

- Eles estão com tudo hoje, né, doutor!?

- Eles? Eles estão sempre aqui!?!?

- Ôxi...

Percebeu que Luis, o faxineiro, o encarava como se ele estivesse falando uma coisa muito absurda e se sentiu envergonhado. Mudou de assunto.

- Cadê o Paulinho?

- Paulinho... Paulinho... Que Paulinho, doutor? - apoiado na vassoura, Luis coçava a cabeça.

- O Paulinho, pô! Paulinho manco, da limpeza...

- Vixe, doutor... O Paulinho foi mandado embora do condomínio faz mais de ano já... - respondeu, voltando a varrer.

- Mais de ano!?!? - Mário repetiu e foi descendo a rua, sentindo-se confuso.

Estava sendo mesmo um dia estranho. Até o muro da escolinha infantil da esquina tinha mudado de cor. De uma hora para outra, o azul tinha se tornado amarelo e ele não entendia como isso era possível.

O rapaz se deu conta de que tinha tempo sobrando e resolveu passar na padaria. Pediu um pão com manteiga na chapa e um café pequeno. O ritmo dos atendentes no balcão era alucinante e o mecanismo da máquina de café chamou sua atenção. Acompanhou cada detalhe com atenção: os grãos inteiros, a quantidade certa de pó, a água fervendo e, de repente, o líquido preto escorrendo devagar dentro da xícara. E de novo. E de novo. E de novo. Olhou para os lados, tentando perceber se alguém também estava vendo aquilo. Ninguém. Todos entravam e saíam muito rapidamente, de cabeça baixa, concentrados em alguma coisa muito importante.

Na estação de trem, se viu impaciente. Todos pareciam muito apressados, mas andavam devagar pelos corredores, digitando e lendo mensagens no celular. Por duas vezes, teve que desviar para não se chocar com gente que passava distraída, com seus fones de ouvido.


Com quantos gigabytes se faz uma jangada, um barco que veleje?
Mesmo com o vagão cheio, conseguiu se sentar. Estava de frente para um senhor de paletó, que o cumprimentou com a cabeça. Ele retribuiu o aceno, mesmo sem se lembrar de onde o conhecia. Reparou no garoto que fingia dormir, ocupando o assento de idosos, e na moça que balançava o corpo ao som de uma música que só ela ouvia, encostada ao lado da porta. Impressionou-se com o silêncio no vagão. A única conversa era entre duas mulheres a poucos metros de onde ele estava.

- Eu tô há uma semana sem internet na minha casa... - dizia a moça que estava em pé.

- Como assim!? Como você vive? - a outra, sentada com as bolsas no colo, até parou de mexer no celular, de tão indignada.

- Pois é... É como se faltasse o ar. - e riu, enquanto tirava o fone de ouvido do bolso.

Por mais que a conversa lhe soasse absurda, ele era capaz de entender as duas. E isso o entristeceu por um instante. Começou a olhar a paisagem pela janela e percebeu que a ponte já estava enfeitada com as luzes de Natal. Notou também novas árvores plantadas à margem do rio e uma ampliação já bem adiantada da ciclovia. 

Quando viu o que julgou ser uma família de capivaras passeando pela grama, pensou em cutucar alguém e dizer: "olha", mas notou que era o único que tinha testemunhado a cena e que já era tarde demais.

Passou o crachá para entrar na empresa e cumprimentou a recepcionista.

- Hum... Cortou o cabelo... Ficou bonito! - disse, sorrindo.

- Ah, já faz uma semana... Mas, muito obrigada! Você foi o único que reparou! - respondeu a jovem, genuinamente feliz com o elogio.

"Uma semana...", ele repetiu em pensamento, enquanto pegava o elevador, que naquele dia estava mais lento que o normal.

Na parada para tomar água, encontrou um grande amigo, aquele para quem estava mesmo pensando em contar a grande história de seu fim de semana. O momento era perfeito e, empolgado, ele começou o seu relato. 

O amigo o recebeu com simpatia. Mas, estava distante. Olhos no iPhone e "aham, aham" para tudo que ele falava. Resolveu encurtar a conversa com um "o que você acha?".

- Oi?... O que eu acho? Eu acho... Ah, o que eu acho... Eu acho que... Hum... Cara, desculpa, eu não tava prestando atenção! - o amigo confessou, no mesmo momento que recebeu uma nova mensagem.

Ele aproveitou que o amigo abaixou a cabeça para ler e foi entrando para o escritório. No corredor, cruzou com duas colegas e ouviu uma frase de relance.

- O que as pessoas com insônia faziam antes da internet?

Sentou à mesa e ficou tentando responder para si mesmo a dúvida da colega. Seu ramal tocou. A ligação foi bem rápida e, quando desligou, cumprimentou o chefe que estava chegando.

- Acabaram de ligar da assistência. Meu celular ficou pronto. - disse por dizer.

- Que bom! Não dá pra ficar sem, né... O conserto demorou? - perguntou o chefe, enquanto tirava o seu aparelho do bolso para checar alguma coisa.

- Não... Só fiquei sem durante o fim de semana... Deixei lá na sexta, vou pegar hoje...

- Caramba! O fim de semana inteiro desligado do mundo? Como você conseguiu? Outro dia, eu fiquei sem celular uma tarde e quase tive um treco... Imagina um fim de semana inteiro!

Ele ia tentar argumentar que havia se sentido bem com a sensação de não poder ser encontrado a qualquer momento ou como havia sido bom não se corroer de ansiedade por uma mensagem que não chega. Mas, àquela altura, o chefe já tinha lhe dado um tapinha nas costas e havia saído em direção a sua sala.

Deu uma risada meio confusa, ligou o computador e se surpreendeu ao olhar o relógio. Não eram nem nove horas da manhã.