Do muro lateral, a visão da casa de baixo e de seu quintal é panorâmica. Ali, com a ajuda de um banquinho, eu passava minhas manhãs aos oito anos de idade. Uma das quatro crianças do vizinho tinha a mesma idade que eu e, além de morar do lado da minha casa e estudar na minha escola, era o meu melhor amigo na época.
Um dia, ele me pegou de surpresa: "pra que time você torce?". Lá do alto do muro, eu fiquei sem saber o que dizer. Em meio aos meus Comandos Em Ação, nunca havia parado para sequer pensar em futebol. Ele engatou uma segunda pergunta, que definiu minha vida: "você não é corintiano, não, né?". "Não, né!? Claro que não!", a resposta, dessa vez, saiu rápida. O tom que ele usou me indicou claramente que ser corintiano não era lá uma coisa muito boa. Uma negativa veemente se fazia necessária. Meu vizinho era palmeirense. E o resto é história. Uma longa história.
Embora eu tenha uma foto com a camisa do Palmeiras datada de 1985, não posso dizer que nasci palmeirense. Mas, isso nunca me fez menos palmeirense. Muito pelo contrário. Depois que eu me dei conta de que havia tempo na vida para o Comandos em Ação e o Palestra, me tingi de verde até a alma.
A primeira partida que me lembro de acompanhar como torcedor foi a decisão do Paulistão de 1992. Eu vi pela TV, na casa do meu pai, um santista não-muito-convicto, que certamente não estava entendendo nada do meu choro ininterrupto. O Palmeiras perdeu.
Mas, depois o Palmeiras ganhou, ganhou muito. E até os meus 16 anos, eu fui um fanático feliz. Ali da sala de casa, a mais de 500 quilômetros da Turiassu, eu comemorei muitas vitórias e títulos. Muitas vezes, em silêncio, quietinho para não acordar o resto da casa, nas quartas-feiras de Libertadores e Copa do Brasil.
Inúmeras broncas eu levei da minha mãe ao, alucinado, chutar o sofá ou socar a parede - e depois, claro, ficar com o pé e a mão machucados. Fora os palavrões. "Não tô vendo balé, mãe!" Tantas tardes de domingo, eu passei dentro do quarto ao pé do rádio-relógio, imaginando gols e lances. Sempre de longe.
A Parmalat foi embora do Palmeiras quase na mesma época que eu fui embora de Apucarana para Florianópolis. Os tempos eram outros, as vacas leiteiras andavam bem magrinhas e, com a inexorável Série B, eu decidi fazer de conta para todo mundo - inclusive para mim mesmo - que eu estava mais interessado nas praias e na faculdade do que na camisa verde. E foi com esse espírito que não fui ao estádio quando o Palmeiras foi à Ilha de Santa Catarina enfrentar o Avaí. Orgulhoso, me recusei a prestigiar meu time no andar de baixo. E me arrependi logo depois: Avaí 1 x 6 Palmeiras.
O time subiu, fizemos as pazes e, no ano seguinte, tentei me redimir. Mas, acho que a camisa verde ficou levemente magoada comigo. Figueirense 0 x 1 Palmeiras, dia 14 de novembro de 2004. A vitória magra e a torcida espremida num cantinho do estádio feio não tiram a importância daquele dia. Finalmente, eu via o meu Verdão in loco.
A primeira vez no Palestra Itália encheu mais os olhos. Foi em março de 2007, assim que me mudei para São Paulo. Era apenas um Palmeiras x Juventus, mas, naquele 4 a 1, estavam em campo simplesmente Edmundo, o herói do tempo do banquinho no muro, e Valdivia, que eu ainda não sabia quantas alegrias - e quanta raiva - me daria dali em diante. São Marcos também estava lá. Mas, ele provavelmente prefere esquecer o dia em que se quebrou gravemente e perdeu o restante da temporada.
Os títulos que brotavam aos montes na TV da sala de Apucarana andavam raros. Contra a Ponte Preta em 2008, eu acreditei que seria escalado para trabalhar lá, no campo. Na véspera, me disseram que não. E já não havia mais ingressos. Foi pela TV mais uma vez. Da Copa do Brasil de 2012, eu fiquei de fora por causa de uma promessa.
Em novembro de 2010, eu fui ao Pacaembu para confirmar a ida do Palmeiras para a final da Copa Sul-Americana. O time havia ganhado do Goiás, em Goiânia, por 1 a 0 e poderia até empatar para avançar. Luan ainda fez 1 a 0. A virada do Goiás tornou infinito o caminho entre o Pacaembu e o lugar onde eu havia estacionado, e me fez prometer não voltar mais a um estádio de futebol enquanto a gente não ganhasse mais um título. Dessas coisas idiotas que você faz e não volta atrás.
Cinco anos e dois dias depois daquela noite no tobogã, às 9 horas da manhã, me foi aberta a possibilidade de comprar um ingresso para a final da Copa do Brasil, contra o Santos. Às 9h06, eu já recebia o e-mail de confirmação. Havia chegado a hora. Eu tinha certeza que seríamos campeões.
Em 62 jogos presenciados no estádio, poucas vezes essa certeza me acompanhou tão fortemente. Foram 35 vitórias, 21 derrotas e seis empates. Mas, nenhum dia como aquele 2 de dezembro de 2015.
A confiança da vitória veio de longe, quase um mês antes. Já havia passado das 18 horas do dia 3 de novembro. Pela segunda vez, Camila e eu perdíamos a chance de pegar aberta La Chascona, a casa de Pablo Neruda em Santiago, no Chile. Conformados, descemos a rua a esmo. Foi quando me deparei com uma loja com prateleiras cheias de porcos de cerâmica. De todos os tamanhos. E um olhar mais curioso apontava: todos eles tinham apenas três patas.
O vendedor, então, nos contou que aquele porco vinha de uma lenda do povoado de Pomaire. Imediatamente, me lembrei do minidocumentário que eu tinha visto naquela manhã pela TV chilena. Justamente sobre a vida, a cultura e a economia do povoado de Pomaire, que vive em função do artesanato da greda, um tipo de argila. A coincidência atiçou minha curiosidade na lenda que o vendedor nos contava.
Em resumo: dizem que, em Pomaire, havia um porquinho muito infeliz. Com três patas, ele sofria o preconceito de toda a cidade. Era desprezado por todos. Certa vez, o desafortunado leitão desapareceu. Seu dono o procurou durante dias, até encontrá-lo ao lado de um imenso pote de ouro. Desde então, os artesãos de Pomaire fabricam milhares do chanchito de três pernas, que virou um amuleto de boa sorte.
A associação entre o porquinho defeituoso e vencedor do Chile e o tratamento que a imprensa e o adversário estavam dando ao Palmeiras antes da final foi imediata.
Compramos um para cada um, claro. El Chanchito de Pomaire era a
da cueca para dentro do estádio, evitando qualquer possível problema com a revista na catraca. Mas, enfim...
Estacionei bem longe do estádio, como tem sido rotina nas noites de Allianz Parque lotado. Desci a rua Caraíbas meio abobalhado com o mar de camisas e fumaça verdes. Faltavam mais de duas horas para o apito inicial. Consegui o que parecia impossível naquele lugar e naquele momento: encontrar quase sem querer um amigo. Uma alegria e uma apreensão. Eu sabia que seria convidado para ver o jogo com ele. E depois de escolher pela internet a mesma cadeira de sempre no novo Palestra, eu não sabia o que fazer. Sim, eu sou desses torcedores estupidamente supersticiosos.
Tentei deixar a razão falar mais alto e me posicionei junto com meu amigo, em pé no lugar mais alto do estádio ao lado da cabine da Globo. Foi ali que eu chorei igual criança quando, na hora do hino nacional, subiram os mosaicos 3D, estouraram os fogos de artifício e se criou todo o clima da decisão. E tensão.
Apertando sem descanso o chanchito com a mão esquerda, vi o Gabriel Jesus perder um gol com dez segundos, vi o Lucas Barrios quase marcar de cabeça, vi o Palmeiras dominar o primeiro tempo, mas sem o resultado que precisava. No intervalo, nos olhamos: "o que eu faço? Vou para o meu lugar?", eu perguntei para o Miguel. "Não sei, cara, não sei", ele também estava nervoso.
Não dava mais para arriscar. Atravessei os setores até a minha cadeira J25 no 536-B da Superior Sul. A de sempre. Dali, sozinho, eu veria o Palmeiras campeão.
Os gols de Dudu eram a prova de que eu estava certo. Seríamos campeões. Pensei, de galhofa: "meu filho vai se chamar Dudu, com o apelido de Eduardo". Fui além e provoquei mentalmente: "não, meu filho vai se chamar Ricardo Oliveira". No minuto seguinte, o pastor tirador de onda fez o gol do Santos e eu fui tomado de um arrependimento sem tamanho. Era culpa minha e da minha provocação, claro. Castigo divino.
Nem nesse momento, porém, eu senti que a vaca iria para o brejo. Mas, a partir de então, eu prometi para mim mesmo: "não vou desejar o mal do adversário, vou apenas torcer para o bem do meu time". Apesar de toda minha raiva das provocações do Ricardo Oliveira, de todos já darem o Santos como campeão, apesar de tudo, o pensamento era estritamente positivo. Não queria o mal de ninguém. Nunca em minha vida tive um coração tão puro. Não foi por minha culpa que o Marquinhos Gabriel escorregou, eu juro.
Os pênaltis consagraram Fernando Prass, consagraram o Palmeiras, consagraram aquela noite na minha vida. Pela primeira vez, eu via meu time levantar uma taça de dentro do estádio. A imagem de Zé Roberto erguendo aquele troféu já está na galeria das mais marcantes dos meus 31 anos.
Pensei muito em meu avô, palmeirense octagenário (o responsável por aquela camisa que vesti em 1985) que talvez tenha tido uma última grande alegria futebolística.
Pensei no garotinho de seis anos, sobrinho postiço, que me mandava áudios no WhatsApp, vibrando a cada lance, a cada gol, criando para sempre uma identidade verde, depois de flertar com os grandes rivais.
Pensei na Camila que vibrava em sua casa, e no quanto ela gostaria de estar ali na J26 tão dela e no quanto a alegria dessas horas é combustível para o amor. "Te amo", eu escrevia. "O Palmeiras é campeão! Te amo!"
Mais uma vez, eu deixava o estádio atordoado. A multidão me levava. Atravessar o mar da Caraíbas parecia uma tarefa impossível
Ok, foi apenas uma Copa do Brasil. "É apenas um jogo", você vai dizer. Mas, só eu e outras 39.659 sabemos o que sentimos naquela quarta-feira, 2 de dezembro de 2015.
Uns três anos depois daquele decisivo "pra que time você torce?", eu me dei conta de que o meu vizinho e sua família eram chatos, feios, bobos e caras de melão e que a única qualidade dele era ser palmeirense. Somos vizinhos que não se falam há mais de 20 anos. Ele não deve nem imaginar o quanto eu agradeço aquele empurrãozinho para o lado verde da força.